Por que e como os muçulmanos tomaram a Sicília?
Autor: Mansur Peixoto 16/07/2022Começando em 827 e terminando no ano de 902 com a queda da última fortaleza bizantina na ilha de Taormina, a conquista islâmica da Sicília foi um marco importante na história islâmica, assim como da Itália e de toda a Europa.
Embora a Sicília tivesse recebido incursões muçulmanas esporádicas desde meados do século VII, essas nunca representaram uma ameaça significativa para o Império Bizantino. Porém, após uma série de desavenças internas e rebeliões entre o líder da frota bizantina da ilha, Eufêmio e o imperador Miguel II, a oportunidade da conquista do sul da Itália surgiu para os governantes do Emirado Aglábida, um estado islâmico do Norte da África, mais especificamente na Ifríquia, atual Tunísia.
Segundo um relato posterior (e provavelmente fictício) a revolta de Eufêmio foi motivada pelo desejo que o mesmo possuía por uma freira, a forçando-a se casar com ele. Diante disso, seus irmãos foram protestar com o Imperador Miguel II, e o mesmo ordenou que seu general na ilha, Constantino Soudas, investigasse o caso, e se tais denúncias fossem provadas verdadeiras, que o nariz de Eufêmio fosse decepado como punição.
Após retomar de uma expedição naval contra o Norte da África, Eufêmio recebeu a notícia do que se passava, decidindo então ir para Siracusa e lá dominando a cidade. Ocorre que o general Constantino tentou retomar a cidade, porém foi repelido, sendo forçado a fugir para a Catânia e sendo eventualmente capturado e morto. Tal história é negada por muitos historiadores, sendo vista apenas como uma ficção. Muito provavelmente o que de fato ocorreu foi motivado pela ambição de Eufêmio , que vendo que o Império se encontrava enfraquecido devido a revoltas e invasões, decidiu por sua vez tentar tomar o poder.
Acontece que Miguel II saiu vitorioso da sua contenda com o rebelde, o que ocasionou sua expulsão da ilha por parte das forças leais ao Imperador. Após a sua expulsão, Eufêmio procurou apoio dos Aglábidas do Norte da África. na figura do poderoso emir Ziayadat Allah I, dando início à conquista islâmica do sul da Itália, uma oportunidade perfeita para expandir o território do Emirado Aglábida, sendo também uma boa ocasião para silenciar os juristas opositores ao Emirado.
Em 14 de junho de 827 os novos aliados de Eufêmio partiram de Susa na Tunísia em direção à Itália, liderados por Asad ibn al-Furat. Após três dias de viagem chegaram em Mazara del Vallo no sudoeste da Sicília, onde atracaram. Entretanto, alguns problemas ocorreram pouco depois das tropas aglábidas atracarem na Itália, já que um destacamento do exército de Asad acabou confundindo os soldados de Euphemius com os de Miguel II, gerando assim um conflito entre as duas partes.
Porém, pouco mais tarde, o novo general da ilha chamado Balata apareceu com o exército bizantino, gerando o conflito entre as forças de Asad e Bizâncio, onde o primeiro saiu vitorioso, forçando Balata a recuar cada vez mais em território até que finalmente fosse derrotado pouco após chegar em Calábria. Os bizantinos não conseguiram enviar muitos reforços para a Sicília, porém os muçulmanos receberam apoio da África, o que fez muita diferença no cerco de Siracusa de 827-828. Nesse momento, Eufêmio começou a se arrepender de ter chamado os aglábidas para a ilha, entrando em contato com o Império Bizantino, incentivando-os a resistir contra os muçulmanos.
Pouco tempo depois, era a vez de localidade de Enna de sofrer um cerco por parte dos aglábidas nos anos de 828-829, mas dessa vez o imperador Miguel II conseguiu enviar uma frota de apoio para a Sicília sob o comando de Theodotus. Apesar de ter sido derrotado logo no começo, Theodotus conseguiu virar o jogo, causando uma derrota muito significativa contra as forças aglábidas, que a essa altura estando confiantes da vitória já haviam começado a cunhar as primeiras moedas na ilha.
Foi no cerco de Enna que Eufêmio morreu, tendo lutado ao lado dos muçulmanos apesar de seus contatos secretos com Bizâncio. Em razão do cerco, a cidade enviou uma guarnição para entrar em acordo com Eufêmio , oferecendo reconhecer sua autoridade, mas quando chegou com uma pequena escolta para negociar com os emissários de Enna ele foi assassinado, sendo desconhecido o que ocorreu com seus apoiadores após sua morte, se lutaram ao lado dos muçulmanos ou se dispersaram.
Entretanto, mesmo com a vitória de Theodotus sobre os exércitos muçulmanos, o seu sucesso não foi perfeito. Logo no começo do verão de 830 uma frota do Califado Omíada de Córdoba chegava na Sicília. Impossibilitado de confrontar tanto os Omíadas como os Aglábidas, Theodotus recuou. No entanto, os exércitos muçulmanos foram devastados por uma praga, o que não havia sido a primeira vez, enfraquecendo significativamente sua força e matando o líder da expedição Omíada, servindo como oportunidade para Theodotus revidar, mas o mesmo foi morto em batalha.
Em 831 a cidade de Palermo iria também cair em mãos aglábidas, sendo o marco decisivo da conquista islâmica na Sicília. Daí em diante novas expedições militares ocorreram, ganhando cada vez mais territórios e consolidando seu domínio na região.
O Emirado duraria até o ano de 1091, quando seria conquistado por Rogério I da Sicília, capturando Noto, a última província islâmica da ilha.
Mas por qual processo os muçulmanos perderiam a ilha?
Tanto a tomada da Sícilia pelos muçulmanos no século IX como sua perda no XI se entrelaçam num fator tão semelhante, que tudo parece se tratar de um mero topos: uma simples fórmula literaria para passar a mesma ideia ou acontecimentos com personagens diferentes. Pois, foi a convite cristão que eles chegaram, e também foi convidando cristãos que a perderam.
Tudo começou em 827, quando após uma série de desavenças internas e rebeliões entre o líder da frota bizantina da ilha, Eufêmio, e o imperador Miguel II, o Amoriano, a oportunidade da conquista do sul da Itália surgiu para os governantes do Emirado Aglábida, um estado islâmico do Norte da África, mais especificamente na Ifríquia, atual Tunísia.
Eufêmio buscando estabelecer sua propria egemonia, apelou a Ziayadat Allah I para que lhe enviasse homens em troca de uma aliança, que o mesmo aceitou, com as primeiras tropas muçulmanas chegando a convite do general cristão ortodoxo para tomar terras de Miguel em seu nome. Após uma dura campanha na qual o proprio Eufêmio acabou morrendo durante o cerco de Enna naquele mesmo 827, o emir decidiu tomar como pagamento pela ajuda as terras que tinha conquistado em nome do líder cristão falecido, criando assim, o Emirado da Sícilia.
As alianças entretanto não pararam por ai. Após o estabelecimento islâmico na ilha, mais pedidos de ajuda sempre estavam disponíveis nos conflitos fraccionais entre cristãos da Península Italaina, com a propria Napoles requisitando tropas muçulmanas para combater Sicard, o principe lombardo de Benevento, em 837. Este jogo de chamar muçulmanos na falta de um bom exército resultou na criação de mais um emirado em solo italiano, o de Bari.
No entanto, o Emirado da Sílicia sessou sua expansão peninsular, enviando exporadicamente forças expedicionárias ao lorde cristão que oferecesse as maiores vantagens, e desenvolveu um dos maiores centros culturais do mundo mediterraneo medieval. Por mais de dois séculos, o Emirado foi uma potencia não só islâmica como também européia, influente no contexto Penínsular, e no eixto bizantino-fatimida, e em relação a al-Andalus na Península Ibérica.
Mas, tudo uma hora chega a seu fim. Em 1044, sob a dinastia árabe dos Kalbidas e seu emir Hasan al-Samsam, a ilha seguiu o mesmo destino do califado de Córdoba em 1031, se fragmentando completamente em quatro qadites, ou pequenos feudos (a versão síciliana das taifas ibéricas): o qadite de Trapani, Marsala, Mazara e Sciacca liderado por Abdallah ibn Mankut; o de Girgenti, Castrogiovanni e Castronuovo sob Ibn al-Hawwàs; Catania detida por Ibn al-Maklatí; e a de Siracusa sob Ibn Thumna, enquanto o emir al-Samsam reteve o controle de Palermo por mais tempo, antes da cidade adotar um autogoverno sob o conselho de xeques.
Seguiu-se um período de disputas entre os qadites que provavelmente representavam grupos de parentesco disputando o poder. Ibn Thumna matou Ibn al-Maklatí, tomou Catania e se casou com a viúva do qadi morto que era irmã de Ibn al-Hawwàs. Ele também tomou o qadite de ibn Mankut, mas quando sua esposa foi impedida de retornar de uma visita ao irmão, Ibn Thumna, aliado dos fatímidas, atacou Ibn al-Hawwàs apenas para ser derrotado. Quando ele deixou a Sicília para recrutar mais tropas, isso deixou Ibn al-Hawwàs brevemente no controle da maior parte da ilha. Vendo-se aliados e, tal como Eufêmio em 827, Ibn Thumna partiu em busca de ajuda cristã em 1061, na pessoa do conde normando Rogério de Altavilla que estava cravando seu proprio Estado na Itália as custas de lombardos e bizantinos, para derrotar Ibn al-Hawwas e tomar toda a Sícilia para si.
Rogério não podia estar mais feliz com a chegada do qadi muçulmano. O viking cristianizado o tratou com honrarias e sem pestanejar concordou em partir com uma força combinada islamo-cristã para tomar a Sílicia em nome de seu agora aliado. E assim foi. Após um longo periodo de campanhas na quais Rogério tinha total ajuda muçulmana até mesmo quando teve que sufocar uma rebelião na Calábria durante o cerco à Jato, e viu os muçulmanos tomarem a cidade em seu nome e a manterem para ele até voltasse a Sícilia.
Ao seu retorno, o conde continuou suas vitórias com a ajuda de Ibn Thumna, porém, tal como também ocorreu com Eufêmio em 827, o qadi morreu em 1062 enquanto sitiava Entella. Rogério então decidiu tomar como pagamento pela ajuda as terras que tinha conquistado em nome do líder muçulmano falecido, criando assim, o Reino Normando da Sícilia.
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